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Silence as an act of rebellion

Spaces are like blank sheets. They ask to be drawn, our vision to be inscribed in them, our perception of the place. Perception, it is known, stems from the relationship, it is the daughter of time. The way we relate to the world – be the world (or its fragment that we address at a given time) a forest, a house or another being –, there is what is in the centre in drawing. Allow me to densify the labyrinth: what lies at heart in Drawing is, therefore, our identity under construction, the centre place of each of us in the world, there included mind and body, since it is from the body, through the senses, that information comes to us and nourishes the thinking (or reason, as Kant knew well), so that we understand where we are, who we are and what are the limits between the I and the other.

Temples have always been centres, places for observation, relational spaces, invitations to the perennial. There the personal textures echo with those of otherness, be it divine or profane. There we allow ourselves to stop. There we take measure of ourselves, before us, before the divine and before others similar to us, distinct from us in what fiction (or individual creation) refers to. The centre is a place for connection, an axis of reflection. The relationship we establish with each particular centre drifts away in a personal search, in an internal itinerary of meanings, in an individual way to reach ourselves and, consequently, the other, during a time managed with parsimony and care. Claiming for silence.

I believe that is exactly what Sandra Baía set out to do in her installation at Ermida. Once a sacred place, devoted to centring, inviting self-absorption, stillness, reflection, it is nowadays inhabited by diverse challenges; yet, by the very nature of Art, these continue to be reflexive and personal and to search for dialogues that demand time from us. Another form of devotion. Inside Ermida’s skin (its interior and exterior limit), a symbolic and desirable place for Drawing, Sandra Baía has created new ways to address the walls and, so, to configure her narrative of appropriation – or of relationship. Still thinking about 2019, when we saw in globalisation, above all, the most voracious face of speed and the demand for omnipresence, and realised in a 2020 turned into dystopia by the pandemic, the installation entitled 19_20 makes us think about the demand for delay.

Stopping is not as easy as it seems. To linger is to renounce urgency, to resist consumption, to cling to the present, to stretch it. To take time is to look for the true meaning of time, an intimate and personal cadence, a different heartbeat. And to stop is precisely what the centre demands from us. Self-absorption is the exercise of the inner gaze. It is the exercise of reconnection.

In Ermida, this installation painted in black blinds the light, arising as an obstacle. However, turning around this apparent wall, light peeks from the inside. Perhaps because of training default, every time that light orients my gaze, I remember a medieval text I read several decades ago in which S. Boaventura analysed the itinerary of the mind to God. To me, God has always been a comprehensive concept. I will not address it here if not to say that, at the moment, it serves me as a metaphor for a slower and more benign time, more reflectional and relational, which sprouts from an internal encounter (an echo, a path). It is in this line that I propose, when reading this model by Sandra Baía, some symbolic approach related to colour. To me, the internal white arises out of chaos, out of an undifferentiated reality that swallows us, suggesting the light of discovery. Is this a proposal for a path to an internal, personal and slow, more reflective and true resonating?

At least, it is in thus way that I read that narrow door, that sort of symbolic threshold, whose inverse stairs, that are glimpsed in the background, make me enter atmospheres of nightmares and difficulty. Are they really to be seen from the inside, giving us this dimension of the obstacle, of our necessity to rise to the highest and most intimate within us by impossible accesses, towards our own consciousness? Are they the most appropriate metaphor for the striven vision of the world? I confess I did not ask the artist everything. Some questions are not to be asked. In the relationship with God, as with Art, we have some responsibility. A desire for delay, to search our own meaning in the visible. In this everyday effort, which always requires multiple perspectives,

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1 I borrow the concept from a work by the Italian neuroscientist Lamberto Maffei, Elogio della ribellione, published in 2016. I borrow the concept from a work by the Italian neuroscientist Lamberto Maffei, Elogio della ribellione, published in 2016.

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may we devote some effort and some time to look inside of us as well. Or into the path that an artist traces to us, pointing the way, even if partially. It will certainly be hers – her vision. But the stars teach us, through the matter we are made also made of: that path is also my own.

I thank Sandra Baía for the sense of delay. Time is our most finite resource. Shall we not forget that. In this time of voracity, in which we are finally forced to stop and to look inside, the silence she offers to us is, still, an act of rebellion.

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O silêncio como acto de rebeldia

Os espaços são como folhas em branco. Pedem para ser desenhados, inscrevendo neles a nossa visão, a nossa percepção do lugar. A percepção, é sabido, decorre da relação, é filha do tempo. Como nos relacionamos com o mundo — seja o mundo (ou o seu fragmento que, num dado tempo, abordamos) uma floresta, uma casa ou outro ser — eis o que está no centro do desenho. Permitam-me que adense o labirinto: o que se encontra no centro do Desenho é, portanto, a nossa identidade em construção, o lugar central de cada um de nós no mundo, aí incluídos pensamento e corpo, já que é do corpo que, através dos sentidos, nos chega a informação para nutrir o pensamento (ou a razão, como bem sabia Kant), para percebermos onde estamos, quem somos e quais os limites entre o eu e o outro.

Os templos sempre foram centros, lugares de observação, espaços relacionais, convites à perenidade. Aí ecoam as tessituras pessoais com as da alteridade, seja esta divina ou profana. Aí nos permitimos parar. Aí nos medimos connosco, com o divino, com os demais semelhantes a nós, distintos de nós no que à ficção (ou à criação individual) se refere. O centro é um lugar de ligação, um eixo de reflexão. A relação que estabelecemos com cada centro em particular parte à deriva de uma busca pessoal, de um itinerário interior de significados, de um modo individual de chegar a nós e, decorrentemente, ao outro, num tempo gerido com parcimónia e cuidado. Com a reivindicação do silêncio.

Creio ser exactamente isso que Sandra Baía se propôs fazer na sua instalação na Ermida. Outrora espaço sagrado, devotado ao centramento, convidando ao ensimesmamento e à paragem, à reflexão, o lugar é hoje habitado por desafios diversos; ainda assim, pela própria natureza da Arte, estes continuam a ser reflexivos e pessoais e a buscar diálogos que nos exigem tempo. Uma outra forma de devoção. Espaço simbólico e apetecível para o Desenho, dentro da pele da Ermida (o seu limite interior e exterior), Sandra Baía criou novas formas de abordar os muros e de assim configurar a sua narrativa de apropriação — ou de relação. Pensado ainda em 2019, quando da globalização víamos sobretudo o rosto mais voraz da velocidade e da exigência de omnipresença, e concretizado já num 2020 tornado essencialmente distópico pela pandemia, a instalação intitulada 19_20 faz-nos pensar na exigência da demora.

Parar não é tão fácil como parece. Demorar-se é renunciar à urgência, é resistir ao consumo, é agarrar-se ao presente, esticando-o. Demorar-se é procurar o verdadeiro sentido do tempo, uma cadência íntima e pessoal, um batimento cardíaco diverso. E parar é exactamente o que nos exige o centro. Ensimesmamento é o exercício do olhar interior. É o exercício da religação.

Na Ermida, esta instalação pintada a negro mate torna cega a luz, erguendo-se como um obstáculo. Dando, porém, a volta a este aparente muro, a luz espreita do interior. Talvez por defeito de formação, sempre que a luz me orienta o olhar recordo-me de um texto medieval lido há várias décadas e no qual S. Boaventura analisava o itinerário da mente para Deus. Deus sempre foi, para mim, um conceito abrangente. Não o irei abordar aqui se não para dizer que me serve, de momento, como metáfora para um tempo mais lento e benigno, mais reflexivo e relacional, que parte de um encontro (um eco, ou um caminho) interior. E é nessa linha que proponho, na leitura desta maquete de Sandra Baía, alguma abordagem simbólica associada à

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2 Tomo o conceito de empréstimo de uma obra do neurocientista italiano Lamberto Maffei, O Elogio da Rebeldia, publicada em 2016, e disponível em português, pelas Edições 70, desde Abril de 2020.

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cor. Para mim, do caos exterior, de uma realidade indiferenciada e que nos engole, surge o branco interior, sugerindo a luz da descoberta. Será essa uma proposta de caminho para um ressoar interno, pessoal e lento, mais reflexivo e verdadeiro?

É, pelo menos, dessa maneira que leio essa porta estreita, essa espécie de umbral simbólico, cujas escadas inversas, que ao fundo se vislumbram, me fazem adentrar atmosferas de pesadelos e dificuldade. Serão elas para ser mesmo vistas por dentro, dando-nos essa dimensão de obstáculo, da necessidade de nos erguermos ao mais alto e íntimo de nós por acessos impossíveis, rumo à própria consciência? Serão elas a metáfora mais adequada da visão esforçada do mundo? Confesso que não perguntei tudo à artista. Há perguntas que não se fazem. Na relação com deus, como com a arte, cabe-nos alguma responsabilidade. Uma vontade de demora, de buscar no visível o nosso próprio sentido. Que nesse esforço quotidiano, que sempre nos exige perspectivas múltiplas, possamos também dedicar algum esforço e algum tempo a olhar para dentro de nós. Ou para dentro do percurso que uma artista nos traça, indicando-nos, ainda que parcialmente, o caminho. Será, certamente, o seu — a sua visão. Mas a tanto nos ensinam as estrelas, na matéria de somos também feitos: este caminho é também o meu.

Agradeço a Sandra Baía o sentido da demora. O tempo é o nosso mais finito recurso. Que não nos esqueçamos disso. Neste tempo de voragem, em que finalmente fomos forçados a parar e a olhar para dentro, o silêncio que ela nos oferece é, ainda assim, um acto de rebeldia.

Emília Ferreira

Almada, Julho de 2020.