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DIÁLGOS COM AMADEU | 2021

Sandra Baía (Lisboa, 1968), é uma artista que trabalha com um âmbito alargado de materiais industriais, e que utiliza, não sem laivos de ironia, como meios para elaborar uma espécie de assemblagens, esses mesmos meios materiais para produzir sugestões metafóricas da vida actual, em sociedades que dependem, hoje, e cada vez mais, dos avatares de uma indústria pós-moderna que se figura como fragmentadora do real.

As suas peças de grande escala — cujas últimas séries não deixam de evocar o fausto e a sensualidade de um James Lee Byars — aparecem-nos, assim, como formas que se impõem por si, na magnitude de escala e de cor, na sua sensualidade quente, que alude a uma espécie de vitalidade sensível que se manifesta no interior do tecido urbano e industrial. Foi Emanuelle Coccia quem escreveu: “e se as mercadorias, e mais em geral as coisas, fossem, no nosso tempo, o último reduto do Bem, e a publicidade se constituísse como o discurso moral por excelência, mesmo que não sendo o único? 1 De facto, diante das novas plasticidades que Sandra Baía propõe — outdoors esvaziados e reduzidos a uma espécie de transparência, quase duchampeana, uma esfera gigante que parece expandir-se por todo o espaço de uma sala da galeria — não podemos deixar de sentir, como se viessem ao nosso encontro, as alusões constantes a uma realidade urbana contemporânea, atravessada pelos sinais de uma industrialização de tipo novo, centrada no consumo mais do que na produção, que marca o desenvolvimento das metrópoles actuais nas sociedades da abundância.

Como referiu, há quase um século, acerca da cidade moderna, Walter Benjamin, “É

apenas graças a ela que, verdadeiramente, todas as coisas cantam: mesmo aquelas que

parecem ser as mais banais. Não se trata apenas dos deuses, dos heróis antigos, mas

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também os soutiens, os sapatos, os carros. Tudo adquire uma voz. ” Também nesta obra

cantante, somos confrontados com uma espécie de subtil sedução dos materiais, lisos, escrupulosamente plásticos, provenientes das formas industriais e, nesse sentido, abrindo para uma plasticidade de tipo pós-humano, já que quase parecem prescindir de nós para fazerem o seu aparecimento. Existem, assim, no espaço e no tempo, numa ambiguidade entre a escultura, a instalação e o resíduo urbano, mas apontando-nos já para um futuro que completamente desconhecemos, mas que, todavia, e mesmo se diante da maior estranheza, parece, desde já, como que telescopar-nos ao nível do sensível.

Porque de facto é preciso que reconheçamos que o tecido urbano tem uma sensualidade própria, por vezes quase vertiginosa, que inscreve as novas marcas do humano, redesenhando a paisagem que nos envolve dos signos de um outro humanismo, cada vez menos dependente da natureza, mas todavia denso da própria significação humana.

1 - in O Bem nas Coisas, ed. Portuguesa Documenta/Disciplina sem Nome, Lisboa, 2017, p. 15.
2 “Passages parisiens” in Paris Capitale du XIX Siècle, Le Livre des Passages,. Cerf, Paris, 1989, p. 825.

Bernardo Pinto de Almeida